Multiparentalidade: um novo olhar jurídico sobre a filiação

DIREITO DE FAMÍLIA

Dra. Paula Criciúma Pires Moraes

7/3/20252 min read

A multiparentalidade permite que uma pessoa tenha dois pais ou duas mães em seu registro de nascimento, com todos os efeitos jurídicos decorrentes dessa relação. Essa realidade social é especialmente presente em famílias reconstituídas, nas quais enteados desenvolvem fortes vínculos afetivos com padrastos ou madrastas, transformando-os em verdadeiros pais ou mães socioafetivos.

O princípio da afetividade é hoje o grande norteador do Direito de Família contemporâneo. Antes visto como elemento secundário, passou a ser a base fundamental das relações familiares. Embora não esteja expressamente previsto na Constituição Federal, encontra respaldo implícito nos artigos 226, §§ 3º e 4º, 227, 229 e 230, conferindo-lhe valor jurídico indiscutível.

O conceito de filiação também evoluiu significativamente. Antes vinculado ao casamento e à preservação patrimonial, tornou-se mais igualitário e justo após a Constituição Federal de 1988. O artigo 227, §6º da CF e o artigo 1.596 do Código Civil de 2002 equiparam todos os tipos de filiação (matrimonial, extramatrimonial ou por adoção), vedando qualquer forma de discriminação. Atualmente, o que realmente importa é a relação de afeto, e não a origem biológica ou formal.

A chamada paternidade socioafetiva surge justamente dessa construção afetiva: laços de amor, cuidado, convivência e assistência moral e material ao longo do tempo. Esse vínculo é reconhecido pela jurisprudência brasileira, muitas vezes prevalecendo sobre a paternidade biológica. Para sua configuração, exige-se a chamada "posse do estado de filho", que envolve o nome, o tratamento social e o reconhecimento público dessa condição.

Reconhecimento da multiparentalidade

O reconhecimento pode se dar de duas formas:

  • Judicial: diversos tribunais já admitem a multiparentalidade. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060/SC (Tema 622 da Repercussão Geral), consolidou o entendimento de que a paternidade socioafetiva, mesmo não registrada, não impede o reconhecimento simultâneo da paternidade biológica, assegurando efeitos jurídicos plenos a ambos os vínculos.

  • Extrajudicial: também é possível o reconhecimento diretamente em cartório, conforme os Provimento nº 63/2017 e nº 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Contudo, o Provimento 83 limitou essa via à inclusão de apenas um ascendente socioafetivo. Para incluir mais de um, é necessária decisão judicial.

Principais consequências jurídicas
O reconhecimento da multiparentalidade gera uma série de direitos e deveres recíprocos entre pais e filhos, reafirmando a proibição de distinção entre os filhos.
  • Alimentos: o dever de prestar alimentos é recíproco e irrevogável. A relação socioafetiva pode fundamentar a obrigação alimentar, que pode ser dividida entre os diversos genitores.

  • Guarda e visitas: todos os pais ou mães têm direito à guarda e visitas, sempre priorizando o melhor interesse da criança. A convivência com todos os genitores é essencial para um desenvolvimento psicológico e afetivo saudável.

  • Direito sucessório: na sucessão, a multiparentalidade garante igualdade entre todos os filhos e pais, assegurando a cada um sua cota-parte na herança. O STF já reconheceu o direito sucessório recíproco entre filhos e genitores, independentemente da origem biológica ou socioafetiva.

Conclusão

A multiparentalidade reflete as transformações sociais e afetivas das famílias contemporâneas. Seu reconhecimento, seja judicial ou extrajudicial, fortalece a proteção integral da criança e do adolescente, promovendo vínculos baseados no afeto, na convivência e no cuidado. Assim, o Direito de Família brasileiro avança para acompanhar as dinâmicas sociais e garantir que todos os laços afetivos relevantes sejam juridicamente reconhecidos e protegidos.